Minha vó era negra, e morreu sem assumir isso. Sua mãe foi tirada de um orfanato em Porto Alegre por uma família rica, que a trouxe para Rio Grande – interior do Estado do Rio Grande do Sul.

Com o tempo descobri que o casamento com o meu avô, branco, foi um problema na década de 1950. Além do próprio sogro, toda a comunidade conhecia a minha avó como “As negrinhas do Pequeno” – em uma referência direta às suas duas outras irmãs, e o pai delas, que era assim conhecido na localidade.

Única mulher negra entrando em uma família de origem portuguesa, minha vó logo teve um casal de filhos. Esse era o passaporte irremediável para a aceitação dentro desse contexto, ainda mais quando ela deu “a sorte” da minha mãe ter nascida penas “moreninha”, e meu tio branco.

Ao olhar as fotos da minha vó hoje em dia, eu percebo tamanho da transformação que ela precisou passar para ser reconhecida para além da negra pobre criada para servir. O branqueamento que ela atravessou é impressionante, dos cabelos até a própria cor da pele, tudo reivindicava a saída desse passado, escondendo a sua própria negritude, que acabou soterrada pela violência do racismo estrutural.

A dívida de gratidão que ela criou, assim como minhas tias-avós, com essa família rica perdurou até seus últimos dias. O que acontecia era uma veneração, ela chegava a recortar as colunas sociais em que integrantes dessa família apareciam no jornal local, e guardava tudo isso junto dos nossos álbuns familiares.

Quando eu era pequeno ela era convidada para os aniversários dessa família, e levou algum tempo para eu perceber porque nunca saíamos da cozinha, junto com a Leia, empregada igualmente negra. Eu ajudava a levar a bandeja de salgados até a parte que tinha uma grande mesa e todos ficavam na volta da lareira, era rapidamente apresentado e retornava para cozinha, onde o meu pratinho de salgados já estava feito.

Um dos meus primos ainda segue a tradição desse laço perverso, e faz isso com o orgulho de quem nunca viu problema em ser tratado “como alguém da família”, mas que, por um desses acasos que a História explica, nunca foi convidado para sentar na mesa da sala – assim como eu nunca fui.

Aliás, em certa altura da vida até mesmo eu fui convocado a “cuidar” de um dos velhos dessa família, uma espécie de companhia encarregada de prestar serviços básicos como assistir televisão junto, e buscar tudo que ele precisasse da cozinha. E foi num desses domingos à tarde que questionaram a minha mãe:

– Mas depois do colégio pra que ele quer estudar, tem quem trabalhar…

Ouvir ela foi muito duro, doeu em mim, e com certeza na minha mãe – que apenas sorriu constrangida sem saber como fugir daquela situação sem demonstrar desrespeito, claro. Até hoje acho que é exatamente essa frase, e tudo que ela representa, que me move como professor em uma escola de periferia.

Aliás, o nome da minha mãe é Francisca. Esse foi o jeito que a minha vó, que se chamava Ieda, teve de homenagear a primeira mulher negra dessa história, a menina que foi retirada do orfanato.

Eu me chamo Felipe, e nasci branco. Assistindo Amarelo – É tudo pra ontem eu lembrava de tudo isso.