Esse é o melhor trabalho de problematização histórica de 2020. O que a Carol Pires faz é uma arqueologia de Jair Messias Bolsonaro baseada em uma questão simples: como o sujeito de entrevistas duvidosas em programas ainda mais duvidosos da TV aberta se transforma em presidente?

Carol Pires

A resposta exige um esforço brutal de distanciamento da realidade política, já que todos nós vivemos sob a égide do homem-mito, queiramos ou não. Desencarnar isso das nossas representações é o que a jornalista da revista Piauí faz, e o resultado é ir ao encontro de uma forma de pensar que, assustadoramente, está do nosso lado na mesa.

Os dois primeiros episódios vasculham o repertório formativo das maneiras de pensar e agir de Jair Bolsonaro, o início de uma jornada do herói encharcada de referências que anos depois repercutem nos seus atos. Jjá o sexto e último episódio apresenta a melhor série de nexos interpretativos entre o presidente e o conceito de clã. E aí é que vem um mergulho na mente de cada um dos filhos – o resultado é perturbador.

O que surge é um homem na amplidão da sua ignorância tão comum, corriqueira, mas sobretudo latente em todas nossas esferas sociais. Ainda, as intersecções com os descaminhos da política nacional são costuradas pela Carol Pires de forma a dar sentido para a ascensão desse sujeito.

O “tosco”, adjetivo que o tempo inteiro é usado para para descrever Bolsonaro pelos seus amigos, não é desprovido de trajetória, e foi no ajuste fino de um conjunto de fatos (reais ou romantizados/inventados) que agiu a inteligência da família Bolsonaro para chegar ao poder. O uso das redes sociais, as modulações narrativas, o apelo ao Brasil profundo que habita a cabeça de todos nós, isso agregado a uma engenharia militarizada da paranoia, são elementos problematizados ponto a ponto pelo roteiro do Retrato Narrado de forma brilhante.

Esse trabalho é como um ponto de partida para outro tipo de discussão que precisamos ter para superar o bolsonarismo. E um jeito de começar isso é admitir que o Jair Bolsonaro está almoçando na nossa mesa, e precisamos achar um jeito de não passar mais o sal.